Masculinidade Prejudicial e a Série "Adolescence" – Uma Reflexão Necessária
- Cátia Castro
- 28 de mar.
- 5 min de leitura
Atualizado: 30 de mar.

A série Adolescence da Netflix tem gerado discussão no espaço mediático e, entre professores, pais/educadores, especialistas e reguladores, não apenas pelo seu conteúdo, mas pela forma como nos impele para tomar contacto com a realidade dos adolescentes, em particular dos rapazes.
A série trouxe para o centro da conversa temas como a influência das normas de género, redes sociais, pares, escolas e comunidade na formação da identidade masculina.
No entanto, propor que esta série seja "de visualização obrigatória" em todas as escolas secundárias, como sugerido por alguns responsáveis políticos no Reino Unido, pode ser uma simplificação que não ajuda à promoção da verdadeira reflexão e mudança, atribuindo aos próprios adolescentes a responsabilidade de resolver problemas estruturais que foram criados e perpetuados por adultos.
O que Adolescence evidencia é precisamente a necessidade de olharmos para os contextos — familiares, escolares, culturais e digitais — onde estas normas de género prejudiciais são aprendidas e reforçadas.
O desafio não está apenas nos adolescentes, mas nos sistemas que os rodeiam: educadores, plataformas digitais, políticas públicas e cultura popular.
Ao invés de responsabilizar os jovens, precisamos de criar espaços de escuta, educação crítica e diálogo aberto, onde pais, professores e a comunidade possam refletir sobre o papel que desempenham — ou deixam de desempenhar — na construção de masculinidades saudáveis.
O verdadeiro impacto desta série pode estar não tanto no que mostra, mas no que nos obriga a perguntar: que tipo de adultos queremos ser para os nossos jovens?
Katie merecia memória
Para além de abordar a radicalização masculina na adolescência, mostrando como um rapaz de 13 anos, Jamie, é arrastado para os discursos tóxicos da manosfera e acaba por matar uma colega da escola.
Esta narrativa oferece-nos o mundo interior de Jamie, os seus dilemas, vergonhas, dores, mas esquece quase por completo a rapariga que ele matou: Katie.
Ela não tem voz, nem história. É um nome e um corpo.
Sabemos que o insultou online, mas nada mais. A série pretende refletir sobre os perigos do ódio masculino online, mas acaba por reforçar o foco no sofrimento do agressor, deixando a vítima esquecida.
A empatia é essencial, sim, mas sem equilíbrio narrativo, corre-se o risco de perpetuar o silenciamento de quem mais precisa de ser lembrado. Jamie merece compreensão.
Mas Katie merecia existir.
Masculinidade, Violência e Família: O que nos está a dizer a nova geração de rapazes?
Ao contrário das narrativas simplistas que atribuem comportamentos violentos à ausência de figuras paternas ou à influência direta de conteúdos misóginos online, a série oferece um retrato mais complexo.
A personagem principal, Jamie, não é "órfão de pai" – tem uma ligação emocional significativa com a figura paterna. Esta relação subverte o cliché da ausência paternal como explicação única para o sofrimento dos rapazes.
Em contrapartida, outras personagens adultas revelam dificuldades em criar proximidade emocional com os filhos, refletindo tensões reais na parentalidade masculina.
Mais do que apontar culpados, a série convida à reflexão sobre a multiplicidade de fatores que contribuem para comportamentos extremos. Jamie é descrito como inteligente e integrado numa família aparentemente funcional.
Ainda assim, é envolvido numa espiral de acontecimentos trágicos. Isto desafia a ideia de que há uma única causa – como a tecnologia, a misoginia estrutural ou a ausência de modelos masculinos positivos – para justificar comportamentos de risco.
Para lá do alarme: compreender em vez de simplificar
Após a estreia, surgiram propostas para utilizar a série em contextos educativos, com o objetivo de “alertar” os jovens para os riscos das dinâmicas de género e da radicalização online.
No entanto, a utilização da ficção como ferramenta pedagógica exige cautela. Estratégias baseadas no choque ou em mensagens moralistas unilaterais podem reforçar abordagens autoritárias e pouco eficazes.
A imposição de discursos prontos, sem escuta ativa, tende a afastar os jovens em vez de os envolver.
Muitas das abordagens atuais centradas nos rapazes adolescentes partem do pressuposto de que estes são, à partida, privilegiados, ou potenciais agressores. Isto gera resistência, frustração e, frequentemente, um sentimento de incompreensão.
Quando os jovens não se identificam com as mensagens que lhes são transmitidas, procuram explicações alternativas noutros espaços – como os fóruns da chamada "manosfera", onde narrativas simplistas e reativas ganham terreno por parecerem mais coerentes com as experiências vividas.
Escutar em vez de impor: a abordagem da incerteza segura
Em vez de procurar causas únicas ou soluções imediatas, torna-se necessário adotar uma postura de "incerteza segura".
Esta abordagem privilegia o diálogo, a exploração conjunta e a construção de sentido entre adultos e jovens. Não parte do princípio de que os adultos têm todas as respostas, mas sim da convicção de que a verdadeira aprendizagem surge da escuta, da dúvida e da co-construção de conhecimento.
A incerteza segura permite criar espaços, físicos e simbólicos, onde os jovens possam refletir sobre os conflitos que vivem, questionar mensagens contraditórias e desenvolver competências para lidar com a ambiguidade e a pressão social.
Ao invés de serem vistos como "problemas a corrigir", os rapazes passam a ser reconhecidos como sujeitos com agência, com dúvidas legítimas e com uma vontade genuína de se situarem no mundo.
Da reação ao desenvolvimento: um novo olhar sobre os jovens
É compreensível que pais, educadores e profissionais sintam medo perante comportamentos ou conteúdos que não compreendem. A tendência natural é procurar certezas e culpados. Mas esta urgência em controlar ou eliminar o risco pode gerar respostas contraproducentes. Em vez disso, importa oferecer aos jovens ferramentas para lidar com o risco, promovendo a sua capacidade crítica e resiliência emocional.
A série Adolescence não propõe respostas fáceis – e isso é, em si, uma virtude. Obriga-nos a olhar para os medos, inseguranças e contradições que atravessam o crescimento dos rapazes. Ao contrário das interpretações reducionistas que a categorizam como um "alerta moral", a narrativa funciona como um espelho das tensões reais vividas por adolescentes: o corpo, o poder, a vergonha, a identidade, a pertença.
Pequenos detalhes – como o medo de agulhas de Jamie, os músculos tensos de uma personagem adulta, ou os insultos sofridos por outro rapaz – revelam inseguranças profundas sobre o que significa "ser homem" hoje. Estes pormenores são convites à reflexão, não à condenação.
Para educar, é preciso primeiro compreender
Mais do que reforçar preocupações pré-existentes, é urgente escutar o que os jovens realmente sentem e pensam. A mudança acontece quando os adultos deixam de tentar impor um guião e se dispõem a estar presentes, a escutar sem julgar, a acolher a complexidade. O verdadeiro trabalho educativo começa aí: não na certeza, mas na relação.
Porque a vida – tal como a série – não tem finais fechados. Tem perguntas, caminhos, e sobretudo, espaço para continuar a conversar.